Caminhavam três ceguinhos pelos arredores de Compiègne, todos no mesmo passo, sem ninguém que os guiasse. Cada um com seu alforje e miseravelmente trajados, os três se dirigiam a Senlis.
Um cavaleiro que vinha de Paris, contumaz tanto no bem quanto no mal, com esplêndido ginete e escoltado por seu escudeiro, aproximou-se a passos rápidos dos três cegos, graças aos passos céleres da sua montaria, e, observando que não havia quem os guiasse, perguntou a si mesmo, por que eles não se desviavam de rumo, acrescentando em seguida:
- Que me cresçam chifres na testa se estes malandros não enxergarem!
Os três cegos ouviram o cavaleiro se aproximar e os três afastaram-se para um lado da estrada, implorando-lhe uma esmola, nos seguintes termos:
- Fazei-nos uma caridade, pelo amor de Deus; somos pobres e mais pobres ainda por sermos cegos!
Para melhor certificar-se da cegueira que ele presumia ser somente um embuste dos mendigos, o cavaleiro resolveu enganá-los, fingindo dar-lhes a esmola pedida.
- Eis aqui - disse-lhes - uma moeda de ouro para repartir entre vocês.
- Que Deus e a Santa Cruz lhe gratifique, pois nada desprezível é a vossa generosidade - responderam os ceguinhos, supondo cada qual que o companheiro tivesse recebido a moeda.
O cavaleiro fingiu continuar viagem; mas, curioso de presenciar a partilha, parou o cavalo, desmontou-o e ouviu o que os três cegos discutiam entre eles. O mais engenhoso dos três disse:
- Ele não nos contentou com migalhas, pois que esplêndido presente nos deu! Sabeis o que devemos fazer? Voltar à cidade, coisa que há muito tempo não desfrutamos, e é justo que cada um de nós se divirta à vontade e gosto, e assim o faça em Compiègne, pródiga e abundante em toda sorte de atrativos.
- Ante palavras tão persuasivas - acrescentou outro cego -, vamos apressar a atravessar a ponte.
E para Compiègne lá foram eles, tal como combinado. E iam os três alegres e satisfeitos, sempre seguidos peio cavaleiro que se prometera não perdê-los de vista, para saber quais eram seus propósitos. E os cegos entraram na cidade, onde ouviram alguns pregões:
-"Ao bom e novo vinho fresco de Auxarre e de Suisson! Ao pão fresco, carne assada e peixes recheados! Albergue para todos com excelente hospedagem! O que eu anuncio merece ser acreditado, e confiado pode ficar quem entrar na minha hospedaria."
Ao qual responderam os ceguinhos:
- Oportuno é tal pregão, pois embora seja muito desmerecedora a nossa figura, vamos nos contentar com umas tristes migalhas? Queremos ser bem tratados e para isso pagaremos com o maior desprendimento, pois de tudo queremos o melhor.
O hospedeiro, pensando que diziam a verdade e que às vezes gente de tal catadura dispõe de mais dinheiro do que outros, se apressou em conduzi-los ao quarto mais confortável da hospedaria, dizendo-lhes:
- Respeitáveis cavalheiros, por que não permaneceis na minha hospedaria por uma semana inteira? Podereis viver a bom gosto e com conforto! Juro-vos que não haverá em toda cidade pratos mais suculentos e bebidas mais saborosas do que eu vos possa oferecer. Ao que os ceguinhos responderam:
- Ide, logo, senhor hospedeiro, por tudo o que ofereceis, e mandai trazer logo essas preciosidades.
E assim dizendo, apresentou o hospedeiro três abundantes pratos, consistentes em carne, empadas e leitões, bem temperados e acompanhados de saborosos nacos de pão branco e regados a jarros de um generoso vinho e bebidas que serviu, após ter acendido a lareira junto à qual se puderam aquecer os hóspedes, antes de se sentarem ao redor da enorme mesa.
Enquanto isso, o cavaleiro deixou o ginete na cavalariça e aprestou-se, mesmo com o apuro de sua indumentária, para almoçar e cear com o hoteleiro de manhã e à noite, se fosse preciso, enquanto os cegos nos melhores cômodos da hospedaria, conforme já se disse, eram servidos e atendidos como grandes senhores. Promoviam grande algazarra, ofereciam-se vinhos mutuamente, como se fossem pessoas de destaque.
- Bebe tu, agora, que em seguida hei de beber eu se diziam e assim daremos fim ao que tão excelente vinho propiciou.
Ninguém suspeitava que algo os importunasse, em tão festiva comemoração. Chegaram à meia-noite tranqüilos, e sem presumir perigo algum, recolheram-se aos alvos e
macios leitos nos quais haveriam de repousar até bem tarde da manhã seguinte.
O fino cavaleiro, de sua parte, estava sempre presente, pois queria presenciar o fim de toda aquela grande burla.
Despertou-se o hoteleiro de madrugada e, em companhia de seu servidor, repassou e recontou os gastos feitos pelos mendigos. E disse o rapaz a seu amo:
- De tal maneira beberam e comeram esses famintos, que só de pão, vinho e empadas lhes sobe a mais de dez moedas.
- O senhor cavaleiro, por sua vez, gastou por cinco!! - respondeu o criado.
- Não é por ele que devemos temer - acrescentou o patrão - mas sim pelos outros. Anda, sobe lá e cobre deles.
O rapaz chegou logo aos aposentos onde os três ainda dormiam.
- Vamos, aprontai-vos o mais depressa possível - disse-lhes -, pois meu amo quer cobrar os vossos gastos.
- Nada de impaciência - lhe responderam os três - que pagaremos o que é devido, basta saber a quanto sobem nossos gastos!
E o mancebo atalhou:
- Só dez moedas.
- Nem vale o trato que recebemos! - responderam os mendigos, já em pé e abandonando o quarto.
O cavaleiro que, embaixo, fingia dormir em duro leito, ouviu os três cegos dizerem ao hoteleiro mais ou menos o que se segue:
- Senhor hoteleiro, temos como pagar, apenas uma moeda; porém, como podereis verificar, é de bom peso, o que significa que tereis de nos devolver o sobrante antes que façamos maior consumo. Ao que o hoteleiro respondeu:
- Assim o farei.
E um dos cegos acrescentou:
- Pois que pague o que tem a moeda. Não serei eu que o faça, pois não a tenho.
- Quem a guarda, então, é o Roberto Barbaflorida! - replicou o segundo.
- Eu? Eu não tenho moeda nenhuma! Só resta tu - aduziu o terceiro.
- Por todo o sangue que corre nas minhas veias, juro que não carrego um só centavo.
- Então quem a tem? - voltou a indagar o primeiro.
- Quem haverá de tê-la? Tu! - insistiu o segundo. - E, se não for tu, não resta outro que não este aqui - ajuntou, referindo-se ao terceiro companheiro.
Ao que novamente teve de declarar o aludido:
- Já disse que não tenho moeda nenhuma!
Assistindo tal disputa, o hospedeiro interrompeu-os para dizer:
- Se não me pagais, grandessíssimos tratantes, juro pelo meu nome que sereis açoitados até que nos vossos nojentos corpos não fique um só lugar sem cicatriz, e depois disso, para um castigo maior ainda, sereis encarcerado em um medonho calabouço. Os cegos começaram a implorar, ao ouvirem tamanha ameaça:
- Não! Isso não! Em nome de Deus, caridade, e esperai, bom hoteleiro, que sereis pago até o último real!
E mais uma vez começou a disputa entre os três.
- Paga, Roberto! Paga e entrega a moeda, já que foste tu que a recebeste, porque ias na dianteira e foi a ti que a deram.
- Pelo contrário - respondeu Barbaflorida. - És tu que tens de pagar, pois vindo logo atrás de nós, é lógico que tu a recebesses.
E vendo tais acusações de uns aos outros, deste àquele e daquele a estes, o hoteleiro, já enfurecido, gritou:
- Vamos acabar com isso! A semelhantes malandragens costumo responder eu com pancadas!
E assim dizendo, fez com que seu servidor estalasse a ponta do longo chicote.
O cavaleiro de bolsa bem repleta e com o queixo cansado de tanto rir ao ouvir a disputa do hoteleiro com seus hóspedes, e notando o perigoso rumo que a coisa ia tomando, aproximou-se do hoteleiro perguntando a razão de tanta discussão e o que pretendia aquela pobre gente.
- Comeram e beberam do melhor até ficarem empanturrados e agora pretendem dar o calote! - respondeu o hospedeiro, acrescentando: - Pretendo adornar-lhes com o açoite estes rostos desavergonhados, de maneira que não poderão mais se apresentar ante pessoas honestas.
- Pois se é esse o motivo, termina aqui a contenda, acrescentando ao meu os gastos deles - disse o cavaleiro. - E se vos devia cinco moedas, assim vos deverei quinze, por serem dez, segundo escutei, o que estes infelizes vos devem. E observai que faz mal o que aos pobres e desvalidos importuna, da maneira com que pretender fazer com estes delituosos.
- Valente, leal e generoso senhor - respondeu o hoteleiro -, de bom grado concordo com vossos desejos.
Contentes partiram então os três cegos, por se terem livrado de tão difícil situação e por terem liquidado suas dívidas de tão estranha maneira.
Mas escutai ainda a tramóia de que se valeu o cavaleiro para não pagar gasto algum.
Precisamente naquele momento se ouviu o repicar do sino da igreja próxima, chamando para a missa, e que sugeriu ao distinto cavaleiro isto, que em seguida disse ao hoteleiro:
- Com certeza, senhor, conheceis alguém da abadia, que responderá pelas quinze moedas que vos devo e ante tal garantia me fiarei essa soma.
- Desde logo, senhor cavaleiro - acrescentou o hoteleiro -, por São Silvestre bendito, como não fiar no nosso bom pároco, a quem não já a quantia que me deveis, mas sim trinta libras emprestaria com toda a confiança?
- Ah! Pois então - respondeu o cavaleiro -, tende por certo que quando voltar da abadia a minha dívida será saldada.
Concordou o hospedeiro e, satisfeito, disse o distinto cavaleiro ao escudeiro que se dispusesse a partir, que ajaezasse os animais e preparasse a equipagem. Rogou depois ao hoteleiro que o acompanhasse, e ambos se dirigiram à abadia, onde entraram, posicionando-se junto ao altar.
O cavaleiro e devedor pegou seu credor pela mão, fazendo com que se sentasse a sua esquerda; mas de repente disse:
- Não terei tempo de ficar até o final; mas como pretendo cumprir o que vos ofereci, vou dizer ao vigário que em meu nome lhe pague as quinze moedas, assim que acabar de oficiar a missa. E nele acreditando piamente, assim lhe respondeu o hoteleiro:
- Como desejais, senhor.
Pôs-se então o fino cavaleiro entre o vigário revestido com seus paramentos sagrados e, em pé, com a graça e a nobreza de seu porte, extraiu do bolso doze moedas, entregando-as de mão própria ao oficiante, enquanto lhe dizia:
- Senhor! Por São Germano vos rogo que me presteis ouvidas e este dinheiro: todos os homens de boa vontade devem ser amigos, e por isso me atreevi a me aproximar do altar e chegar até vós e dizer que, na noite passada, em uma hospedaria, da qual o dono é um homem de bem, prudente e sem malícia como assim consta ser o bendito Jesus, Nosso Senhor. Mas uma cruel doença atacou-o subitamente, ontem à noite, alterando seu juízo, precisamente quando os hóspedes e ele encontravam-se em meio a uma grande confusão.
Pouco tardou, graças a Deus, a recobrar o discernimento. Porém ainda tem perdida a razão e seria uma grande caridade conseguir a sua cura completa; e para tanto vos rogo ler sobre sua cabeça o Evangelho inteiro, assim que termineis vossos cânticos religiosos.
- Pois vos juro em nome de São Gil - respondeu o vigário - que hei de fazer tudo o que me estais pedindo.
E dirigindo-se ao hoteleiro, com voz firme lhe disse:
- Assim que acabar a missa, cumprirei o que este cavaleiro me pede.
Ao que o hoteleiro respondeu:
- Não quero outra coisa, senhor vigário, e a Deus e a vós me recomendo.
Obtida a promessa, despediu-se o cavaleiro do oficiante:
- Que o Senhor cuide de vós, pai e mestre!
O vigário aproximou-se do altar e deu início à missa maior, a qual era muito concorrida por ser festa de domingo. No entanto, o devedor se aproximou do credor para despedir-se dele, e o credor, solícito e reconhecido, acompanhou-o até a hospedaria. O cavaleiro e seu cavalo, seguido pelo escudeiro, empreendeu a marcha em trote rápido enquanto que o hoteleiro regressava com pressa para a abadia, na ilusão de reaver suas quinze moedas. E ali, perto do altar, esperou o remate da missa e que o sacerdote se despojasse de suas sagradas vestes.
Concluído o divino ofício, o clérigo apanhou o missal, tendo, provavelmente, rodeado seu peito com a estola, e, aproximando-se do hoteleiro, disse-lhe com voz imperativa:
- Ajoelhai-vos mestre Nicola - ordem e palavras que não agradaram ao hoteleiro, como ele o demonstrou ao replicar:
- Senhor vigário, eu não vim aqui para isto, mas sim para que me pagueis as minhas quinze moedas.
O clérigo respondeu:
- Salta aos olhos que este infeliz não raciocina - e, elevando os olhos aos céus, acrescentou: - Ajudai-me, Senhor meu, e devolvei o juizo a este desventurado. Sabei, Santo Deus, que ele está louco, basta ouvi-lo para sabê-lo.
Ao escutar tais palavras, o hoteleiro encarou os fiéis ajoelhados para dizer o que segue:
- Ouçam, ouçam como brinca este santo varão! Ainda não fiquei louco, mas ele fará com que eu perca a razão se assim continuar este clérigo a farsa de pretender fazer-me voltar a razão, colocando o livrete em cima da minha cabeça! Insistiu o cura, desta vez já em tom de prece:
- Escutai-me! Escutai-me bem, que tudo o que nos chega pela vontade de Deus nunca traz desventura! Este livro, que pela segunda vez coloco sobre sua cabeça, é o
Evangelho.
- Não duvido disso, senhor sacerdote - replicou o hoteleiro, não convencido da eficácia do ritual. - Mas como nada disso tudo me importa, e na taverna o trabalho me aguarda, pela terceira vez vos digo que a única coisa que eu quero é que meu dinheiro seja pago.
De nada serviu tal insistência, pois o vigário, chateado já com a insistência do hoteleiro, agrupou em torno de si os fiéis para lhes dizer:
- Este infeliz está completamente maluco!
Aos gritos, o hoteleiro protestou:
- Pelo sangue de Santa Cornélia e pela fé que tenho na minha filha, não existe em mim pingo desta tal loucura! Exijo que parem com a enganação e que me paguem o que me devem!
O vigário, assustado diante da atitude violenta do reclamante, ordenou aos fiéis a sua volta:
- Segurem-no!
E os fiéis, sem esperar uma segunda ordem, caíram sobre o hospedeiro, segurando-o com força pelos pés e pelas mãos. Todos tiveram o cuidado, com boas falas, enquanto o cura, com a estola no pescoço, levantava e descia de novo o missal sobre a cabeça do mestre Nicola, lendo o Evangelho do princípio ao fim. E, sempre supondo a demência do mestre Nicola, lhe aspergiu borrifos de água benta.
Finalmente o assustado hoteleiro pede para voltar à hospedaria, prometendo não reclamar mais nada de pessoa alguma. Benzeu-o então o clérigo, dizendo:
- Vai, bendito de Deus, filho meu, que já estás livre do teu mal!
Guardou o hoteleiro um prudente silêncio e, cego de vergonha e de desgosto por ter sido causa de tal afronta e engodo, voltou cabisbaixo e sem mais demoras para a sua hospedaria.
Lección / Moraleja:
Por poner.